GT 08 – Educação Infantil e Ensino Fundamental
SOCIABILIDADES[1] NA ESCOLA: PENSANDO AS RELAÇÕES RACIAIS NO ENSINO FUNDAMENTAL COM CRIANÇAS AFRODESCENDENTES
Antonia Regina dos Santos Abreu
Raimunda Nonata da Silva Machado
Francis Musa Boakari
RESUMO
As relações raciais presentes na escola constituem-se como parte integrante do desenvolvimento da aprendizagem das crianças afrodescendentes. Trata-se de relações que precisam acontecer da maneira mais harmoniosa possível, tendo em vista que a escola funciona como um espaço de interação, envolvimento entre pessoas, construção de vínculos afetivos, que demandam respeito às diferenças com o enfrentamento da problemática da discriminação e do preconceito. As relações que se constroem entre aluno/aluno, professor/aluno, família/aluno fazem parte das nossas inquietações, principalmente, no que se refere às questões raciais que são instituídas no espaço escolar e como estas refletem no aprendizado das crianças do ensino fundamental. Mediante um relato de experiência, levantou-se alguns questionamentos sobre as relações sociais que são construídas entre alunos e professores de duas salas de aula do ensino fundamental em uma escola do município de Altos (PI). Analisou-se como professores se relacionam com as crianças afrodescendentes na escola, abordando um pouco sobre determinados pontos que se referem às questões raciais e o processo de aprendizagem. Para tanto, refletiu-se como os professores interferem no desenvolvimento dessas crianças, e como isso reflete na sua auto-estima. Para esse estudo, dialogamos, principalmente, com autores como: Boakari (1994); Candau (2003); Cavalleiro (2008), Gomes (2010), Romão (2001) e Souza (2001). Utilizou-se da observação participante, que nos permitiu conviver nesse espaço escolar e nos oportunizou a vivência de muitos momentos, em que aconteceram situações de “silenciamento”, por parte da professora, sobre comportamentos racistas e discriminatórios, além de permitir a construção do cenário deste estudo. A reflexividade da vivência na escola possibilitou o confronto com as reflexões dos/a autores/as utilizados nesse texto.
Palavras-chave: Relações sociais. Aprendizagem. Crianças afrodescendentes.
INTRODUÇÃO
O atual cenário escolar brasileiro vem mostrando que não é possível calar diante das questões e discussões étnico-raciais. A instituição escolar é o espaço onde serão dissolvidos os saberes educacionais, e é de suma importância, que estudemos questões importantes relacionadas à diversidade, preconceito racial, discriminação, na tentativa de evitar que as crianças afrodescendentes sofram qualquer tipo de preconceito.
Sobre isso Cavalleiro (2008, p.57) diz que a forma como lidamos com a diversidade étnica na escola “perpassa somente a questão da normalidade. Não se trata de ser ou não ser lindo o negro. É normal ser negro, como é normal ser branco, descendente de japonês, ou qualquer outra ascendência que se tenha”. Então, as questões étnicas precisam sim, cada vez mais, serem trabalhadas nas escolas, dando visibilidade as diferenças que fazem parte da vida das pessoas, deixando claro que ser diferente não deve ser motivo de inferiorização e desvelar as relações de poder que permeiam tais sociabilidades.
No contexto social atual, a escola deve ser compreendida como espaço institucional contraditório que, ao mesmo tempo em que contribui com a reprodução de conhecimentos, pode ser apropriada para discutir, com os alunos, questões de diversidade, especialmente, entre as crianças que estão em processo de formação.
O que nos instiga, neste artigo, é refletir sobre: como os/as professores/as se relacionam com as crianças afrodescendentes na escola; como estas crianças se comportam nos momentos em que passam por qualquer tipo de situação constrangedora? De que maneira o/as professores/as podem contribuir para que as crianças afrodescendentes se desenvolvam melhor no espaço escolar? Para tanto, buscaremos descrever casos, que acontecem na escola, e que estão relacionados a alunos e alunas afrodescendentes.
Percebendo que a escola, também, pode proporcionar mudanças significativas de postura, de argumentos, já que, o aluno deve ficar boa parte de sua vida neste espaço, torna-se necessário que se pense alternativas para não desenvolver um ensino apenas reprodutor. É preciso refletir e construir práticas educativas de maneira inovadora que possam contemplar a problemática das diversidades culturais.
Nessa perspectiva, buscamos suporte teórico em alguns autores, sustentando nossas discussões, considerando a relevância que eles têm para o processo de análise das relações raciais no processo de socialização das crianças na escola. Dentre eles, destacamos: Boakari (1994); Candau (2003); Cavalleiro (2008); Gomes (2010); Romão (2001) e Souza (2001).
Não pretendemos obter respostas, tal incompletude[2] é porque estamos no processo de construção dos entendimentos sobre a maneira como a criança afrodescendente consegue se desenvolver na escola, mediante a caracterização e descrição das práticas pedagógicas dos/as professores/as. Como a relação professor-aluno poderia influenciar nas construções das relações raciais?
Logo, no relato que segue, apresentaremos o cenário deste estudo, os aspectos metodológicos, abordando alguns questionamentos sobre situações que foram observadas na realidade de uma escola do município de Altos (PI), bem como a reflexão crítica de alguns momentos em que a discriminação e o preconceito se mostraram presentes nesse espaço, na tentativa de compreender o processo de socialização da criança afrodescendente na escola.
APRESENTANDO O CENÁRIO E OS ASPECTOS METODOLÓGICOS
O cenário que apresentamos aqui, diz respeito a alguns momentos de observação participante que aconteceram em duas escolas da periferia do município de Altos (PI).
Como trabalhávamos nessas escolas, algumas situações nos chamaram atenção, especialmente, momentos que envolviam crianças afrodescendentes, ora, servindo de gozação em brincadeiras, ora, sendo rejeitadas ou ignoradas por alguns colegas, ou seja, fazendo parte dos grupos constituídos por sujeitos invisíveis[3] (BOAVENTURA, 2010) na escola. A partir dessa rotina, nos inquietamos por tentar compreender como as crianças afrodescendentes se desenvolvem no espaço escolar? Será que as situações descritas acima, interferem no processo de desenvolvimento de suas aprendizagens?
A partir daí, decidimos trabalhar com a observação participante, porque somos “membro do grupo sob observação” e, por isso, as atividades são desempenhadas naturalmente sem que haja inibições diante do observador, ou tentativas de influenciá-lo. Trata-se de “um nível elevado de integração grupal”, já que os sujeitos envolvidos não percebem um “estranho” entre eles. (RICHARDSON, 1994, p.262)
Por fazermos parte do grupo dessa escola, foi viável e interessante desenvolver uma reflexão crítica nesse espaço de nossa convivência. Assim, fomos despertando a vontade de analisar um pouco mais sobre essas salas de aula. A possibilidade de realizar um exercício de reflexividade da ação, mergulhando numa realidade social (BOURDIEU, 1989), significa considerar a experiência primeira, questionando-a e abandonando-a, isto é, “desenvolver uma explicação do vivido” (PINTO, 1996, p. 13). Vejamos, pois, duas realidades, cujo cenário identificaremos como sala de aula “Lélia Gonzáles”, (que focaliza uma menina) e sala de aula “Milton Santos” (que focaliza um menino).[4]
A sala de aula “Lélia Gonzáles” era uma turma de quinto ano, que tinha vinte alunos, sendo onze meninos e nove meninas, nesse espaço, considerando a noção de afrodescendência[5], havia duas meninas e três meninos afrodescendentes. A sala de aula “Milton Santos”, diz respeito a uma turma do terceiro ano, que tinha quinze alunos e apenas um menino afrodescendente. Este é espaço em que construiremos o cenário de nossa reflexão crítica, ou seja, a história de alunos/as e professores/as, um conjunto de episódios concretos guiados pelas ações dos sujeitos.
Dessa forma, o cenário que vamos narrar tem como marco temporal o mês de novembro de dois mil e onze, por se tratar da data de vinte de novembro em que é comemorado “o dia da consciência negra”. Em relação às atividades deste cenário, selecionamos as professoras que ministravam a disciplina de História. Pensamos, especificamente, nessa disciplina, por se tratar da oportunidade, que a mesma proporciona, para se discutir sobre as questões étnicas na sala de aula, estendendo, inclusive, para a escola como um todo.
AFRODESCENDÊNCIA E OS PROCESSOS DE SOCIALIZAÇÃO NA ESCOLA
A escola é um espaço privilegiado, em que podem ser trabalhados todos os tipos de assuntos necessários para a formação de uma pessoa. Porém, temos sentido falta, até mesmo nos cursos de formação, de questionamentos sobre: crianças e adolescentes em situação de risco, relação entre família e escola, povos migrantes e imigrantes, as diferentes realidades apresentadas na escola particular e na escola pública, assim como, questões étnico-raciais e a situação de crianças e adolescentes negros nas escolas (SOUZA, 2001), dentre outros. Percebemos que essas questões são vistas como de pouca importância para o processo de formação das pessoas.
Essa realidade nos mostra que a escola precisa dispor de profissionais que dominem conteúdos de forma mais ampla, apropriando-se de incidentes que acontecem realmente na escola, sempre buscando explorar a realidade dos alunos, seus anseios e dúvidas. Sobre as relações raciais, tema de nossa discussão, são muitas as dificuldades dos/as professores/as, no sentido de intervir em situações que envolvem práticas discriminatórias. Para Candau (2003, p. 29), essa dificuldade, está relacionada, dentre outros aspectos, a “existência de um senso comum que, em geral, não reconhece a presença do racismo entre nós e, quando admite a sua realidade, sempre a situa nos outros.”
Desse modo, os/as professores/as precisam se preparar, de alguma forma, para lidar com situações de racismo, discriminação e preconceito na escola. Mesmo que não exista essa preocupação de todo o corpo docente, ainda sim, é necessário repensar a prática pedagógica que está sendo desenvolvida na escola, pois, muitas vezes, podem ser evitados frustrações e constrangimentos na vida de alunos afrodescendentes, desde que os professores saibam trabalhar com elas, ao invés de apenas isolá-las ou silenciá-las.
O cenário das relações raciais que apresentamos, neste estudo, narra sobre meninos, fazendo brincadeiras de mau gosto com uma das meninas afrodescendentes da sala de aula “Lélia Gonzáles”. São situações em que eles debochavam de seu cabelo, fazendo piadinhas. O posicionamento da professora foi simplesmente pedir que os meninos se calassem. Nesse caso, percebemos um silenciamento por parte da professora que, em nada interferiu, para discutir sobre o assunto. Como resolução para este tipo de situação, Boakari (1994, p.23) aponta a “formação destes professores, que recebem uma preparação precária e deficiente, no lugar de uma mais adaptada à realidade brasileira e às preocupações mais evidentes por parte da maioria dos brasileiros.”
Logo, podemos destacar que os próprios processos de formação dos professores limitam, e muito, a qualidade do ensino nas escolas, pois discussões relacionadas a questões raciais, discriminação, preconceito, racismo, que são de extrema relevância social, aparecem de forma pontual nas disciplinas ministradas nos cursos superiores, ou são simplesmente descartadas.
Ora, não é possível que professores/as deixem as crianças sem respostas para seus questionamentos, acerca de qualquer tema que envolva as suas vidas. As interações presentes na escola precisam acontecer de maneira que ajude o aluno a se formar como pessoa, a tornar-se curioso, criativo, pesquisador, mas, se a escola não lhe proporcionar isso como ficará seu processo de aprendizado?
Para Cavalleiro (2008, p.16) “interagindo com os outros, a criança aprenderá atitudes, opiniões, valores a respeito da sociedade ampla e, mais especificamente, do espaço de inserção de seu grupo social”. Isto significa que, os grupos sociais em que a criança mais vai desenvolver questionamentos e posicionamentos étnicos-raciais, são a família e a escola, principais mediadores das aprendizagens das crianças.
Quando acontecem, por exemplo, situações que deixam os/as alunos/as fragilizados/as, por algum motivo, e nada é feito por parte da escola, isso fica marcado para sempre em sua vida. No caso de crianças afrodescendentes, que ainda sofrem muitos preconceitos nos mais diversos espaços sociais, onde interagem, seja em casa, na escola, a não interferência com esclarecimentos que possam desconstruir representações estereotipadas, leva a cristalização de um pensamento negativo de si próprio.
Sobre isso, Cavalleiro (2008, p.11) afirma ainda que
a necessidade de aprofundar o estudo da questão étnica mostra-se, ainda, indispensável, diante do atual processo de globalização, uma vez que este aproxima culturas e povos distantes, ao mesmo tempo que parece facilitar o reaparecimento de movimentos de xenofobia e de racismo que se imaginava enfraquecidos.[...] A globalização mundializou o debate sobre o racismo, preconceito e discriminação, em especial nas sociedades multiétnicas, como a brasileira.
Não se podem ignorar as discussões das questões étnicas em nenhum espaço social, muito menos na escola, espaço de convivência, onde as pessoas precisam se preparar para atuar na sociedade. Entretanto, o cenário que descrevemos é composto por um conjunto de situações que deixavam as crianças afrodescentes tristes ou agressivas. Vejamos:
Havia uma menina afrodescendente alvo, constante, de apelidos por causa do cabelo cacheado; um menino que tinha o apelido de “nego-drama” (os colegas o chamavam assim para vê-lo muito zangado, porque ele batia em todos que lhe xingavam); brincadeiras de mau gosto com as crianças afrodescendentes dentro da própria sala de aula. Algo que chamou bastante atenção foi o fato da professora do quinto ano da sala de aula “Lélia Gonzáles” explorar “o dia da consciência negra”, apenas fazendo a leitura do texto que estava no livro didático da escola, passar uma tarefa pra casa e, pronto! Não houve maiores discussões ou questionamentos.
O fato de não se discutir determinadas questões e posturas dos/as alunos/as em relação aos momentos de preconceitos, principalmente com as afrodescendentes, faz com que as crianças não se vejam identificadas no espaço escolar, como se este não permitisse a permanência delas, desencadeando, dessa maneira, sentimentos negativos nessas crianças, o que poderá comprometer o seu rendimento na escola.
Novamente, a ausência das discussões significativas desses conteúdos em sala de aula, por parte desses professores, pode acarretar muitas frustrações para as crianças afrodescendentes. Por exemplo, a forma de interferência da professora, mandando os meninos calarem a boca, quando os alunos chamam a menina de “cabelo duro” (sala de aula “Lélia Gonzáles”); ou, ameaças para deixá-los sem recreio, quando provocavam o menino apelidando-o de “nego-drama” (sala de aula “Milton Santos”), ou outras formas de deboche; não estimula o respeito às diferenças, não informa sobre diversidades culturais, não valoriza a identidade das crianças afrodescendentes, sendo desperdiçado o momento oportuno para trazer essas discussões à tona, com a temática do “dia da consciência negra”. Não acontecendo esse envolvimento, o conteúdo foi trabalhado de maneira mecânica, reproduzindo estereótipos.
Enfim, o cenário apresentado, pode desencadear uma série de complicações no processo de aprendizagem das crianças afrodescendentes, o que nos leva a refletir com, Romão (2001, p.163), sobre
uma prática pedagógica que promova a auto-estima, necessariamente precisa estar comprometida com a promoção e com o respeito do indivíduo de suas relações coletivas. O educador que não foi preparado para trabalhar com a diversidade tende a padronizar o comportamento de seus alunos. Tende a adotar uma postura egocêntrica e singular, concluindo que se as crianças negras “não acompanham” os conteúdos, é porque são “defasadas econômica e culturalmente”, avaliações estas apoiadas em esteriótipos racial e cultural, ou são “relaxadas” e desinteressadas.
Para um professor que pense dessa maneira, será bastante complicado fazer com que as crianças afrodescendentes avancem nos estudos, porque os próprios educadores estariam culpando essas crianças por não se saírem bem nas tarefas escolares. Essa situação torna-se de fato, um entrave para o/a aluno/a, fazendo-o/a compreender que, realmente, não pode avançar tanto quanto uma criança não-negra.
Mas, no bojo dessas discussões, encontram-se, também, possibilidades de buscar o enfrentamento dessas dificuldades, observando a legislação. O Estatuto da criança e do adolescente, por exemplo, propõe em seu Art. 58 que: “No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura”.
Também, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (1996), no seu artigo 32, parágrafo III, tem como um dos objetivos do ensino fundamental “o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores”, logo a escola tem a responsabilidade de instigar seus alunos a conhecerem valores ligados a comportamentos éticos.
Para isso, é importante destacar que, no momento que o professor faz interferências em sala de aula, para dar alguma contribuição de discussão com os alunos, seja sobre discriminação, racismo, preconceito racial, história dos negros, enfim, o professor não está fazendo um favor para as crianças afrodescendentes, ele está cumprindo leis que determinam que esses conteúdos sejam abordados obrigatoriamente na escola. Conforme a Lei nº 10.639/03- MEC que em seu Art.26-A, parágrafo 1º determina que
O conteúdo programático a que se refere o caput desse artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
Desse modo, as crianças têm direito ao acesso à cultura, mas, ao chegar à escola, com sua cultura familiar, e a cultura de sua comunidade, o que acontece, é o ensino de uma cultura formalizada, padronizada e universal, trabalhando alguns conteúdos novos para elas, sem respeitar suas experiências.
O importante é compreender que, na escola, deve ser ensinada uma cultura que aborde a questão das diversidades, da aceitação do diferente, respeitando os valores de cada um. Isso pode acontecer quando o professor percebe um ato de discriminação na sala de aula e discute o conteúdo, envolvendo as crianças para que todos possam apresentar suas opiniões.
Nesse sentido, podemos corroborar com as palavras de Gomes (2010, p.496), para ela “o racismo e a desigualdade racial que, lamentavelmente, ainda persistem no Brasil são exemplos de como este país, a despeito da intensa diversidade cultural e da propalada miscigenação racial, ainda precisa avançar”. O cenário que descrevemos, aqui, é justamente o que presenciamos em nossas escolas. Como elas precisam avançar! Como precisa mudar o foco de seu ensino!
A instituição escolar não pode limitar-se a reproduzir conteúdos universais, é preciso ir além, desafiar os alunos, tirá-los da zona de conforto, é necessário provocar as crianças e os adolescentes a discutirem sobre quaisquer questões que lhes incomodar, sejam eles afrodescendentes ou não.
Um dos grandes problemas que movem essa discussão, é que existe ainda uma ausência de conteúdos que problematizem a questão do negro nos currículos escolares. Mesmo com o conjunto de legislação que determina a obrigatoriedade desses estudos sobre a pluralidade e a diversidade, ainda são abordagens muito limitadas, permanece o silêncio, que aponta, marca, governa.
Portanto, podemos inferir que faz parte da função social da escola desenvolver discussões acerca da história e contribuição do povo negro para nosso país, destacando, a história da África, da mesma forma que se discutem tantos outros conteúdos, evitando que se fale do negro, ou, do afrodescendente de maneira debochada.
FINALIZANDO SEM CONCLUIR
Percebemos que as questões raciais, de fato, não são abordadas no cenário narrado. Continuamos denunciando práticas discriminatórias na escola, em termos mais generalizados, e na sala de aula. As questões raciais são julgadas como sem muita importância, contribuindo para perpetuar os silenciamentos, o que torna essas questões de fato indiscutíveis na sala de aula, ou seja, invisíveis.
Neste cenário, não houve intervenção pedagógica da professora no sentido de promover atividades que homenageassem o vinte de novembro, que valorizasse a história e cultura do afrodescendente. Com isso, o conteúdo pluricultural, realmente, não permeia as relações sociais na escola, mas sim, a prática da monocultura.
O fato de não se discutirem esses conteúdos na sala de aula pode desencadear um série de situações constrangedoras para as crianças afrodescendentes que acabam virando motivo de piadinhas e gozação pelos colegas, e tudo isso fere a auto-estima da criança afrodescente, que é capaz de se sair tão bem nas tarefas como as crianças brancas, mas que, diante das situações descritas, termina por não se sentir acolhida na escola, por se achar feia e inferior.
O silenciamento do/a professor/a, diante de situações pejorativas na escola, que coloca crianças afrodescendentes como motivo de piadas, pode atrapalhar, significativamente, o desempenho dessas crianças, podendo, ainda, ocasionar traumas que podem lhes machucar por muitos anos de suas vidas. Estudos que questionem e denunciam práticas como estas, descritas nesse cenário, permitem entender este silenciamento como discurso. Trata-se de uma linguagem que comunica a desvalorização do outro e não ausência de intervenção, significação ou sentido.
Logo, percebemos que esses estudos sobre o povo negro precisam ser parte integrante dos planejamentos diários da escola, e não ser abordados apenas em situações necessárias. É extremamente importante, resgatar a contribuição do povo negro no processo de construção do nosso país, pois as crianças afrodescendentes, precisam se encontrar no espaço escolar; ser reconhecidas; vê-se refletidas nas discussões e nos textos apresentados na escola, de forma valorativa; pois, esse modo de olhar, vai oportunizar às próprias crianças afrodescendentes, a valorizarem-se mais e ter sua auto-estima fortalecida.
REFERÊNCIAS
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[1] “A sociabilidade é o jogo no qual se “faz de conta” que são todos iguais e, ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular; e “fazer de conta” não é mentira mais do que o jogo ou a arte são mentiras devido ao seu desvio da realidade” (SIMMEL, 1983, p. 173).
[2] Para Boaventura Santos (2006) o princípio de incompletude se refere à ignorância que é ignorante de um determinado saber e ao saber que, justamente, a superação de uma ignorância particular, pois disso, decorre a possibilidade de diálogo e de disputa epistemológica entre os diferentes saberes. As contribuições dos saberes em diálogo, neste estudo, orienta-nos para superação de uma certa ignorância que se transforma em práticas diferentemente sábias.
[3] Para Boaventura Santos (2010), os invisíveis fundamentam àqueles que são visíveis. Os invisíveis desaparecem enquanto realidade, tornando-se inexistente, são produzidos como inexistente. São grupos cujas aspirações são negadas.
[4] Foram afrodescendentes que se destacaram como intelectuais nas lutas contra o processo de marginalização do povo negro. Lélia Gonzáles (1978-1994) lutou contra o racismo, por meio de sua atuação acadêmica e militante no Movimento Negro e o Professor Milton Santos (1926-2002), através de seus estudos sobre os problemas urbanos. (ROCHA, 20..)
[5] O termo afrodescendente utilizado refere-se aos sujeitos com suas histórias de vida ligadas ao “conhecimento do passado africano, nasce, sobretudo em decorrência deste conhecimento e da necessidade de relacionar o passado africano com a história do Brasil” (CUNHA, JR, 2005, p. 4). São brasileiros/as afrodescendentes porque reconhecidos na ancestralidade africana, possuem uma relação umbilical (que se evidencia nas sociabilidades) com aquele continente e o seu povo historicamente. Deste modo, uma brasilidade sendo a definidora da africanidade em questão... há africanos afrodescendentes, estadunidenses afrodescendentes, etc.