GT 07 – Infância, Juventude e Violência na Escola
ESPELHO, ESPELHO MEU, EXISTE O BELO NO MEU EU?:
UMA ANÁLISE DAS POSSIBILIDADES DE AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE AFRODESCENDENTE A PARTIR DE LIVROS INFANTIS.
Antonia Regina dos Santos Abreu (UFPI)
Poliana Rezende Soares Rodrigues (UFPI)
Francis Musa Boakari (UFPI)
INTRODUÇÃO
Era uma vez uma linda garotinha linda, de cinco anos de idade, que estudava no Jardim II de uma escola em Altos, uma cidade do Piauí. Certo dia, a sua professora contou em sua sala uma história de um autor muito famoso, Monteiro Lobato. Nesta história, entre várias personagens interessantes, havia uma que possuía várias características físicas parecidas com a da garotinha, era a Tia Anastácia, uma senhora negra, pobre e que trabalhava como cozinheira do sítio. Como se tivesse mordido a maçã envenenada, a garotinha, de linda, passou a se enxergar feia, pois não gostava mais da cor da sua pele nem da textura de seus cabelos.
Infelizmente, a passagem acima não se trata de uma ficção, pelo contrário, a cena ilustrada é um trecho comum na história de muitas pessoas negras de nosso país. É por isso que é comum ouvirmos que no Brasil, ser negro/a é tornar-se negro/a. Diferente das crianças brancas que contam com um repertório vasto de referenciais para sustentar a construção de suas identidades, a criança negra possui dificuldade em encontrar esses referenciais, não porque estes não existam, mas porque não são representados.
A (in) visibilidade de negros/as na área da Literatura Infantil é reflexo da desigualdade racial de forma geral, uma vez que as práticas de representação envolvem relações de poder, “incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído, [sendo assim], quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade” (SILVA, 2000, p.18 - 91). Essa (in) visibilidade é muito influente na vida das crianças negras, considerando que a identidade é uma construção relacional em que os significados produzidos pelas representações possibilitam “aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar” (SILVA, 2000, p.17) e também na vida de crianças brancas, uma vez que a repetição de uma mensagem – a ausência de protagonistas negros/as – tendem a tornar “natural” o que é historicamente construído.
Assim, o presente artigo buscou visibilizar obras que representam a possibilidade de afirmação da identidade afrodescendente, apresentando protagonistas negras em papéis que possibilitam a valorização da história e cultura africana e afrobrasileira, oportunizando a “interrupção das identidades hegemônicas [e um questionamento da] repetibilidade que garante a eficácia dos atos performativos que reforçam as identidades existentes” (SILVA, 2000, p. 95), ao mesmo tempo, enfatizamos a Literatura Infantil como um instrumento de transmissão de ideologias raciais que alimentam o racismo.
RACISMO BRASILEIRO: UMA LIÇÃO ENSINADA ATRAVÉS DA LITERATURA
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar” (Nelson Mandela)
Corroborando Nelson Mandela, é oportuno ressaltar que, antes de possuirmos produção científica no Brasil, ou seja, até meados do século XIX, as teorias que hierarquizavam os povos segundo a cor da pele nos chegavam através da Literatura, como vemos no trecho a seguir:
[...] a moda cientificista entra no país por meio da literatura e não da ciência mais diretamente. As personagens serão condicionadas pelas máximas deterministas, os enredos terão seu conteúdo determinado pelos princípios de Darwin e Spencer, ou pelas conclusões pessimistas das teorias científicas raciais da época. [...] Com efeito, modelos e teorias ganhavam larga divulgação por meio dos heróis e enredos dessa literatura, que pareciam guardar mais respeito às máximas científicas evolutivas do que à imaginação do autor (SCHWARCZ, 1993, p. 32)
Com isso, ressaltamos que o racismo ensinado não está explícito nas escolas e sim, nas formas mais sutis que possam ser introjetadas pela sociedade de forma inconsciente e, portanto, mais eficaz. Nesse sentido, as imagens que representam a população negra e a própria invisibilidade de sua história, cultura e religião, nos livros infantis, podem ser tratadas como indícios de como atua esse aprendizado na sociedade: desde a infância, num processo contínuo e longitudinal.
Para entendermos a relação entre racismo e literatura infantil, devemos recorrer ao conceito de raça que foi utilizado para classificar os grupos que possuíam diferenças visíveis em seus traços morfológicos. Tal conceito de raça, empregado para caracterizar os seres humanos, emerge da necessidade suscitada pelas grandes navegações de o homem entender a diversidade humana. O contato com o outro, sobretudo um outro de costumes, língua e crenças diferentes, gerou a necessidade de explicações forjadas a princípio pela Teologia e, posteriormente pela Ciência. A partir do século XVIII, a explicação do outro incorpora o conceito de raça já existente nas Ciências Naturais - Botânica e Zoologia - no entendimento dos grupos humanos.
O grande problema do uso do conceito de raça na humanidade não foi o de classificar os seres humanos em grupos de acordo com a cor da pele e outros traços morfológicos. Segundo Munanga,
Se os naturalistas dos séculos XVIII – XIX tivessem limitado seus trabalhos somente à classificação dos grupos humanos em função das características físicas, eles não teriam certamente causado nenhuma problema à humanidade. Suas classificações teriam sido mantidas ou rejeitadas como sempre aconteceu na história do conhecimento científico. Infelizmente, desde o início, eles se deram o direito de hierarquizar, isto é, de estabelecer uma escala de valores entre as chamadas raças. O fizeram erigindo uma relação intrínseca entre o biológico (cor da pele, traços morfológicos) e as qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais (MUNANGA, 2004, p. 17).
Assim, podemos definir racismo como a crença de que as características intelectuais e morais de um grupo são determinadas pelas características físicas e biológicas. Embora a evolução da ciência tenha descartado o conceito de raça para classificar os grupos humanos, isso não foi suficiente para aniquilar o racismo, pois a raça ainda é um conceito que habita o imaginário coletivo da humanidade.
No Brasil, as teorias raciais que depreciavam a população negra e a mestiçagem, tiveram de se adequar às condições reais em que a maioria da população era afrodescendente. Assim, ao passo que a mestiçagem foi sendo construída como uma característica positiva, como a essência do povo brasileiro, o objetivo de branqueamento do Brasil foi se fortalecendo. Com a abolição da escravatura, vieram os incentivos de imigração de povos brancos, o que condicionou a exclusão de negros/as do trabalho livre.
Na realidade, a histórica abolição brasileira não teve como preocupação a realidade social e humana da população negra. Pode-se considerar que foi um ato meramente simbólico para os escravizados, pois não foi acompanhado de nenhuma política de inclusão social. Essa desigualdade gerada nesse contexto, nunca sem a crítica e reivindicação da população negra, tem perpetuado na nossa sociedade.
Evidentemente que hoje o racismo não assume uma forma institucionalizada e explícita como aconteceu em contextos anteriores. Mas, continua fazendo vítimas através de novas formas de discriminação presentes em diversos setores da sociedade, tais como a exclusão, o esquecimento, o silêncio, a negação, a humilhação.
Educação para as relações etnicorraciais: ainda (nem) um Conto
Em 2003 foi promulgada a Lei 10.639 que estabelece a obrigatoriedade da inclusão da História e Cultura Africana e Afro Brasileira no currículo escolar, e em 2004 estabelecida as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, afirmando que
o sucesso das políticas públicas de Estado, institucionais e pedagógicas, visando a reparações, reconhecimento e valorização da identidade, da cultura e da história dos negros brasileiros depende necessariamente de condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas favoráveis para o ensino e para aprendizagens; em outras palavras, todos os alunos negros e não negros, bem como seus professores, precisam sentir-se valorizados e apoiados. (BRASIL, 2004, p. 13)
Porém, a promulgação da Lei 10.639/2003 não gerou o impacto esperado na questão racial, uma vez que ainda não conseguiu convencer as mentes mais esclarecidas da sociedade brasileira de que os professores precisam ser preparados para atuarem na educação de base e para isso é necessária a reformulação dos programas de cursos de graduação.
O conhecimento que circula os espaços acadêmicos continua a ter um caráter monocultural.
Um dos problemas decorrentes do legado académico imperial no campo das ciências sociais contemporâneas deriva do facto de muitos académicos pensarem que, ao designar algo, estão implicitamente a compreendê-lo. [...] A persistência da colonização epistémica, de um universalismo monista na observação e interpretação do o mundo reafirma a necessidade de continuar a lutar pela descolonização do saber e das representações. (MENESES, 2007, p. 72, sic)
Outro dado importante é que o racismo ainda se faz presente no sistema de ensino, de forma velada. Uma de suas formas de manifestação é na literatura em que se constitui sob a negação da história da população negra. Os livros didáticos mantêm-se conservadores das imagens de humilhação da população negra, em que esta é “marcada pela estereotipia e caricatura, identificadas pelas pesquisas realizadas nas duas últimas décadas” (SILVA, 2005, p. 23).
Percebemos, então, uma reprodução da ideologia do branqueamento, uma vez que, desde cedo na escola, as crianças estarão internalizando uma imagem negativa do que é ser negro e, por outro lado, introjetando uma imagem positiva do que é ser branco.
De forma geral, a África apresentada nos livros didáticos e paradidáticos continua a ter uma história única, em que se reforçam as hierarquias sociais e se recria a dicotomia eu/outro no imaginário social. Se, por um lado, com os tímidos avanços em relação ao combate ao racismo, a imagem do/a negro/a nesses livros deixam de representa-lo/a como indolente e preguiçoso/a, destituído de civilidade, recorrendo aos saberes legitimados por cientistas do século passado, é previsível que os/as professores/as por meio dos livros didáticos continuem a representar a África na escola como um
[...] continente atrasado, necessitando de ajuda internacional económica e científica do Ocidente para se afirmar no espaço mundo. Esta posição procura explicar nos nossos dias a especificidade africana como distinta ou exótica, fazendo com que as propostas de alternativas se tornem quase irrealizáveis. O legado africano dissolve-se internamente, impossibilitando que esta experiência tão rica possa ser absorvida por um corpus teórico mais amplo, integrando África no mundo, em lugar de sistematicamente a marginalizar e excluir. (MENESES, 2007, p. 72, grifos da autora, sic)
Relacionando a afirmação de Lajolo e Zilberman (1988, p. 19) de que “o tipo de representação a que os livros procedem [...] deixam transparecer o modo como o adulto quer que a criança veja o mundo”, com o resultado de pesquisas que evidenciam que os livros infantis continuam veiculando conteúdos racistas (ESCANFELLA, 2007), podemos constatar que as teorias raciais e o projeto de branqueamento, forjado no século XIX, continuam a vigorar em nossa sociedade.
Recentemente, a questão do racismo na Literatura Infantil ganhou espaço de discussão, através do parecer CNE/CEB 15/2010 relatado por Nilma Lino Gomes que faz a denúncia à obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, a qual foi selecionada para o Programa Nacional Biblioteca da Escola PNBE/2003 e distribuída nas escolas públicas de ensino fundamental. Na capa da referida obra analisada e denunciada por Antonio Gomes Costa Neto, consta indicação de que a obra se encontra em acordo com as novas normas gramaticais e no interior dela constam notas explicativas quanto aos avanços nos debates em relação à questão ambiental, salientando que no contexto de sua produção os animais retratados na história ainda não estavam ameaçados de extinção nem protegidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, tendo a obra inclusive adaptado o título do livro que a originou, A caçada da onça.
Em seguida, vimos circular no ciberespaço a Carta Aberta ao Ziraldo escrita por Ana Maria Gonçalves em que é feita uma crítica ao escritor de O menino maluquinho, por ter defendido Monteiro Lobato contra a acusação de que ele era racista. Neste documento, Ana Maria Gonçalves explicita vários trechos de Lobato que normalmente não são divulgados (ou são mesmo intencionalmente ocultados) para nossa sociedade, que acabou absorvendo apenas a imagem do Lobato autor de Sítio do Pica Pau Amarelo. Nos referidos trechos, além de ficar claro o pensamento racista de Lobato, a autora retrata como o autor tinha consciência de que o literário pode ser um instrumento de se fazer eugenia de forma sutil e que, no Brasil, esses processos indiretos funcionavam com maior eficiência (LOBATO, 1955).
Embora o Mito da Democracia Racial tenha tentado colocar panos quentes na história da escravidão no Brasil, a partir da ideologia de que negros e brancos conviviam em plena harmonia, cada qual sabendo o “seu lugar”, é do conhecimento de todos/as que o corpo negro foi objeto de violência física na época da escravidão.
De acordo com Chesnais (1981), violência física se caracteriza por agressões irreparáveis contra a integridade da pessoa, colocando em ameaça a sua vida, sua saúde e sua liberdade. Além do trabalho forçado que já caracteriza a violência, os castigos, a aculturação e a proibição de crenças a que os negros foram submetidos são histórias de violência que, de tão difundidas, acabaram se naturalizando. Assim, nos livros didáticos, imagens de africanos escravizados recebendo chibatadas são recorrentes, ao passo que a representação do negro limita-se a esse cenário.
Essa representação da violência física a que o corpo negro foi vítima na época da escravidão, geralmente não vem acompanhada de uma problematização sobre esses processos de exclusão e injustiça social. O fim da escravidão, por outro lado, é associado apenas ao trabalho de abolicionistas brancos e à Lei Áurea assinada pela princesa Isabel e esse tipo de mensagem é reproduzida em outros suportes como a Literatura Infantil.
Significa dizer que a criança negra cresce incorporando essas mensagens sobre o que é ser negro, as quais não oferecem possibilidades de uma afirmação da identidade afrodescendente, pois mesmo que haja uma flutuação na significação, ela não pode ser infinitamente conotativa, pois estará sempre associada a uma significação preferencial e hegemônica (HALL, 2006), levando a criança a uma situação conflituosa de negação do próprio corpo.
De forma não-explícita, a escola estabelece padrões eurocêntricos de ser e estar no mundo:
Para estar dentro da escola é preciso apresentar-se fisicamente dentro de um padrão, uniformizar-se. A exigência de cuidar da aparência é reiterada e os argumentos para tal nem sempre apresentam um conteúdo racial explícito. Muitas vezes esse conteúdo é mascarado pelo apelo às normas e aos preceitos higienistas. Existe, no interior do espaço escolar, uma determinada representação do que é ser negro, presente nos livros didáticos, nos discursos, nas relações pedagógicas, nos cartazes afixados nos murais da escola, nas relações professor/a e aluno/a e dos/as alunos/as entre si (GOMES, 2002, p. 45)
O espaço escolar, ao contrário do que deveria ser, propicia o que Gonçalves (1985) chamou de ritual pedagógico a favor da discriminação racial, manifestado através da hostilidade que se faz presente diante dos processos discriminatórios existentes em seu interior, diante dos estereótipos contidos nos materiais didáticos e diante da invisibilidade da população negra nos livros infantis.
Remetendo ao conceito de violência escolar de Charlot, a violência simbólica é compreendida como:
A falta de sentido de permanecer na escola por tantos anos; o ensino como um desprazer, que obriga o jovem a aprender matéria e conteúdos alheios aos seus interesses; as imposições de uma sociedade que não sabe acolher os seus jovens no mercado de trabalho; a violência das relações de poder entre professores e alunos. Também o é na negação da identidade e satisfação profissional aos professores, a sua obrigação de suportar o absenteísmo e a indiferença dos alunos (CHARLOT, 1997 apud ABRAMOVAY, RUA, 2002, p. 69, grifo nosso).
Sendo assim, crianças negras estão totalmente expostas a esse tipo de violência simbólica, em que Eliane Cavalleiro, ao fazer uma analogia com o divulgado caso em que o então Presidente da República Luíz Inácio Lula da Silva ofereceu asilo a uma cidadã do Irã que estava condenada ao apedrejamento por determinação das leis de seu país, denominou como apedrejamento moral (CAVALLEIRO, 2010), contida nos materiais e discursos no interior da escola que é naturalizada e menosprezada por seus profissionais.
Corpo Negro em Livros Infantis: das margens às imagens
Assim como a população negra é colocada às margens, quando não esquecida, nos livros infantis, escritores e escritoras negras também sofrem com o mesmo processo. Mesmo que em número inferior, o que não justificaria visto que consumimos muitas obras clássicas importadas de outros países e por outro lado não importamos Contos Africanos com a mesma intensidade, possuímos livros infantis que trazem a população negra para protagonizar histórias que não falam de miséria e fome.
Analisando as imagens da Coleção Baobá da Editora Grafset de autoria de Roberto Benjamin, entendendo como imagem não somente as figuras, mas as palavras que criam imagem (WALTY, FONSECA, CURY, 2001), percebemos um avanço significativo se comparado aos papéis dados a personagens negras nas consagradas obras lobatianas. A Rainha Ginga, conta a história de uma mulher que liderou, de forma corajosa, honrosa e inédita, os povos ambundos-jagas que habitavam Dongo e Matamba, da atual Angola. Em A Serpente de Sete Línguas, da mesma coleção, um príncipe negro salva a filha do rei, de uma cidade vizinha, das garras de uma lendária serpente e casa-se com a jovem. Em ambas histórias, as personagens estão bem vestidas, estão envolvidas em cenários de prestígio como reinados, tronos e usam apetrechos simbólicos como coroas e jóias.
Livros semelhantes a esses, que possuam protagonistas negras desempenhando papéis de prestígio ou destaque na sociedade são escassos no Programa Nacional de Biblioteca da Escola (RODRIGUES, 2012).
Se a escola é o espaço por excelência para se mudar questões de ordem cultural, como é o caso do racismo, temos como prioridade as mudanças dos imaginários racistas construídos e alimentados pelas imagens dos materiais utilizados na escola desde o ensino infantil, fundamental e médio até o nível superior, sendo a literatura, inclusive a infantil, um desses materiais, uma vez que está presente em todos os níveis de ensino.
Apenas a promulgação da lei 10.639/2003 não garante que essa mudança irá acontecer de forma satisfatória, é preciso, corroborando as proposições de Arroyo
[...] avançar mais na criação de normas compulsórias sobre a eliminação de todo preconceito racial no material escolar e nas condutas dos alunos e profissionais das escolas. Desenvolver políticas mais coerentes de produção de novos materiais. Incorporar representantes do movimento negro, pesquisadores, intelectuais e educadores na formulação dessas políticas. Políticas mais focadas de formação inicial de professores a administradores para o trato da diversidade e da pedagogia multirracial. Obrigar os centros de formação a incorporar nos currículos de pedagogia e licenciatura o conhecimento da nossa realidade multirracial (ARROYO, 2007, p.114).
Infelizmente essas mudanças tem sido conquistadas a base de muita polêmica e resistência, a exemplo do Parecer CNE Nº 15/2010 que chama a atenção para a presença de estereótipos e mensagens racistas em livros infantis que continuam a ser distribuídos às escolas. Por se tratar de um livro de um autor clássico e importante para a história da literatura infantil no Brasil, Monteiro Lobato, houve resistência em aceitar que obras de autores consagrados como esse devam ser criticadas, exceto aquelas obras que poderiam comprometer a imagem desses autores, como a obra lobatiana O Presidente Negro que é pouco divulgado nos sistemas de ensino, talvez por trazer idéias muito semelhantes com a condenada ideologia de Hitler.
Se a invisibilidade da população negra nos livros infantis já pode ser considerada prejudicial para a construção da identidade de crianças negras, o que dizer da presença de mensagens racistas e violentas que ainda podem ser encontradas em algumas obras?
Mesmo que, assumindo o conceito de Hall (2006), a identidade não seja um processo irreversível e conclusivo, podendo, assim, ser constantemente reconstruída e reelaborada, é preciso garantir condições adequadas na infância por ela mesma, sem se preocupar apenas com o futuro dessas identidades. As crianças negras precisam construir suas identidades de forma positiva para serem felizes agora, e não apenas ao se tornarem adultas.
À GUIZA DE UMA REFLEXÃO
E, para viver feliz para sempre, uma outra garotinha que não gostava da textura de seus cabelos, teve de assistir a um filme em que a protagonista da história – Barbie – ao se transformar em uma princesa, passava a ter seus cabelos cacheados.
Tentar transformar o que a criança pensa de si e do Outro, através da literatura infantil, é uma estratégia significativa para transformar a sociedade, tendo que a criança é um ser social que, não absorvendo passivamente a cultura transmitida pela sociedade, também opera mudanças nessa cultura. Porém, no contexto atual, as imagens de protagonistas negras na Literatura Infantil ainda são esmagadas pela repetição das imagens que reafirmam o padrão de beleza e de civilidade hegemônico, não trazendo muitas possibilidades de afirmação da identidade afrodescendente.
A convivência emerge como a poção mágica na qual acreditamos poder transformar nossa realidade. Essa parece ser a tentativa das políticas públicas já existentes, como a Lei 10.639/03 e a política de cotas nas universidades públicas, que forçam a convivência e reivindicam a presença da população negra, tanto na forma de conteúdos curriculares quanto na forma física. E reivindicar a presença de protagonistas negras nas histórias é, da mesma forma, induzir essa convivência, essa aproximação ontológica entre brancos/as e negros/as.
Este artigo anseia que a discussão induza a maior exploração da área por escritores/as e ilustradores/as negros/as por acreditarmos que ser sujeito e não objeto de representação pode gerar mudança significativa, bem como conscientizar professores/as de seu papel de Fadas Madrinhas, que com apenas um toque da vara de condão – uma história, uma imagem, uma referência – pode mudar o rumo de tantas garotinhas a esperar o beijo encantado para conseguirem enxergar o belo de suas identidades.
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