GT 16 – Educação, cultura e sociedade.
EDUCAÇÕES E AFRODESCENDÊNCIAS: FALAR EM IDENTIDADES PARA PROBLEMATIZAR VIDAS?
Francis Musa Boakari (UFPI)
musabuakei@yahoo.com
Francilene Brito da Silva (IFPI)
artlenha@yahoo.com.br
Resumo:
Questões de afrodescendência e educação nas suas dimensões diferenciadas ainda voltam para a problemática das identidades, construções estas que tem tudo a ver com o poder nas suas manifestações diversas. Tudo está intimamente ligado às relações de poder na nossa sociedade. Experiências com pesquisas recentes no tocante ao tema supracitado evidenciam esta situação de modo contundente, especialmente a partir das informações coletadas das participantes desses estudos numa abordagem qualitativa, de cunho explicativo-interpretativo; problematizando a naturalização das construções sociais como estratégia de manutenção do status quo por práticas mantenedoras encobertas por discursos igualitários e progressistas. A primeira destas pesquisas desenvolvidas envolvendo grupos de mulheres versou sobre o significado da arte afrodescendente para algumas educadoras afrodescendentes e segunda, sobre as trajetórias de mulheres de origem africana. Aqui elas foram analisadas em conjunto. Análises de conteúdo apontaram para a construção das identidades, melhor ainda, identidades reconciliáveis com as suas visões de vida, como eixo de suas atividades – escolhas, opções, estratégias e instrumentais, nas diferentes condições em que essas mulheres se encontravam. Ser afrodescendente parece veia central pela qual passam outros elementos identitários – êxito profissional, sucesso educacional e participação em movimentos de educação social formam as micro-veias para construção continuada de identidades para acompanhar as mudanças e a própria dinamicidade da vida. São problematizadas questões da exclusão explícita e da inclusão excludente inerente à questão das identidades. Tanto como professoras e/ou educadoras do campo da arte quanto como psicóloga e técnica educacional essas mulheres nos ensinam muito de si e de nós mesmos/as.
Palavras-chave: Educações. Afrodescendências. Identidades. Poder.
Introdução
A voz da minha bisavó ecoou criança
nos porões do navio.[...]
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias [...]
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue [...]
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
[...] recolhe em si a fala e o ato.
(Conceição Evaristo. In: Vozes-Mulheres)
Um texto elaborado para discutir os conteúdos de dois estudos que focalizam o mesmo objeto (sujeitos dum grupo populacional) de análise a partir de olhares particulares teria que ter um conteúdo indagador, no máximo. Deste modo, pretendemos fundamentar a nossa discussão aqui, nos baseando nos achados de dois estudos recentes, uma vez que estes achados de fato servem de bases para outras questões. Como num trabalho de escavação arqueológica, pesquisas sobre as questões das educações e afrodescendências continuarão providenciando pontos de referência para outras investigações relacionadas ou que vão muito além de estudos já desenvolvidos. O presente texto serve de exemplo para esta tarefa acadêmica; uma necessidade num contexto nacional onde estudos sobre estas questões ainda são poucos considerando a representatividade dos agentes sociais que protagonizam com os (nos) fatos sociais durkheimianos servindo de eixos diversos, nas tentativas de reconhecer melhor as realidades deste segmento da sociedade brasileira e de muitas outras do mundo afora.
A educação como processo e produto se refere à transmissão/aquisição de algum tipo de conhecimento/competência, geralmente com a intermediação de algum agente ou instrumental social. Como processo ela envolve a socialização em geral e a aculturação em termos mais específicos; experiências que ajudam tornar um indivíduo, membro competente numa determinada sociedade/comunidade/família/grupo. “Ninguém escapa da educação”, nas palavras de Brandão (1988) para enfatizar como é vital este processo na vida das pessoas e de seus agrupamentos. Na sociedade ocidental de hoje, a educação na sua modalidade institucional, sistema escolar é a mais importante, tratada como carro-chefe das outras formas de socialização. A escolarização é somente um tipo de educação e todas as outras instâncias da vida de um indivíduo também se constituem em educações. Processos que se iniciam ao nascer e terminam com a morte da pessoa. São estas educações das quais falamos neste texto. As variadas formas de formação social que fazem parte integral da vivência de pessoas consideradas normais em condições consideradas regulares.
Afrodescendência é categoria descritiva com implicações históricas e políticas. Refere à descendência (ascendência) do continente africano, referência mais comumente à África subsaariana. Considerando que toda espécie humana é descendente de africanos em tempos remotos, é a descendência nos últimos séculos que está em consideração; africanos das diásporas recentes, em particular das migrações forçadas pela prática criminosa da escravidão transatlântica, que levou principalmente pessoas de pele escura para a Europa e as Américas. São basicamente descendentes destes africanos de quem falamos aqui (CUNHA Jr., 2005). Daí a necessidade de nacionalizar a terminologia a fim de ser mais didático. Aqui, enquanto falamos de afrodescendentes, o foco está nas/os brasileiras/os afrodescendentes – pessoas no Brasil cuja ascendência da África subsaariana é explícita pela aparência física, “fenotipicamente africana/o”. São afrodescendências porque há muitas nações, muitos povos, muitas tribos e milhares de grupos étnicos no continente africano subsaariano. A escolha do termo afrodescendência e seus corolários é opção política. É decisão de excluir outros termos como preto, parda, negro, e similares para não ofuscar a essência da discussão, uma vez que estes carregam uma carga historicamente negativa, preconceituosa e racista; desumanizadores no mínimo.
Neste sentido, questões de afrodescendência e educação ainda voltam para a problemática das identidades, construções estas que tem todo a ver com o poder nas suas manifestações diversas. Experiências com duas pesquisas recentes evidenciam esta situação de modo contundente, especialmente a partir das informações apreendidas das participantes desses estudos numa abordagem qualitativa, de cunho explicativo-interpretativo; problematizando a naturalização das construções sociais como estratégia de manutenção do status quo por práticas encobertas de discursos igualitários e progressistas. Elementos de pesquisas desenvolvidas envolvendo grupos de mulheres sobre o significado da arte afrodescendente para educadoras afrodescendentes e as trajetórias de mulheres de origem africana foram analisadas em conjunto ao mesmo tempo. As identidades demarcadas compõem subjetividades históricas, lutas continuadas e afirmações persistentes. Assim, as identidades são subjetividades e estas subjetivações fazem parte das realidades destes sujeitos também históricos, e daí produções fundamentalmente socioculturais.
A problemática da afrodescendência e educação, pluralizando as categorias principais é também referência ao fato de que os agrupamentos generalizados de membros deste segmento da população nacional brasileira, terminam incentivando tratamentos universalizados que geralmente são convites para práticas excludentes, medidas que calam, desprezam e escondem. Quando um grupo social, que é diverso e enriquecido pelas próprias diferenças internas é universalizado, alguns segmentos são esquecidos em favor de outros. Poderiam não ser inicialmente tão evidentes porque todas/os as/os afrodescendentes estão sendo contemplados. Entretanto, na prática concreta dos comportamentos diários e das ações sociopolíticas fica evidente que de fato está sendo feita uma seleção consciente cujo objetivo básico aproxima à exclusão. As/Os afrodescendentes compõem um grupo diverso com interesses e preocupações não sempre semelhantes. Lembrar deste detalhe é modo de reconhecer as histórias e identidades dentro do grupo que ajuda definir as identidades além das fronteiras do mesmo. É uma condição dialética – sendo membros do mesmo grupo e membros de pequenas aglomerações dentro do conjunto maior; sendo de dentro e de fora-dentro do grupo ao mesmo tempo. Estas condições possibilitam evidenciar problemas semelhantes e diferentes, exigindo estratégias comuns e outras adaptadas às características das/os interessadas/os.
O interessante é que no tocante às/aos afrodescendentes, as diferenças se encontram nas construções identitárias. Tudo que fizeram contra afrodescendentes ou elas/eles próprias/os fizeram por elas/eles próprias/os se explica pelas experiências de construção das identidades de si, dos seus grupos – como segmento populacional e menores agrupamentos socioculturais.
Afrodescendentes – identidades: semelhanças em diferenças
Na sua pesquisa exploratória e explicativa sobre o significado da arte afrodescendente, Silva (2011) observa que,
A ação de tecer como sinônimo de compreender olhares de educadoras sobre o tema da arte afrodescendente foi trabalhada conforme um processo e como tal, não se fecha ao término deste documento, mas se abre para suscitar outros olhares interconectados igualmente às tessituras da vida. Na problemática desta investigação, tal como o olhar do adulto, me dirigi pelas interpretações à cerca da arte afrodescendente em três diferentes contextos, com três diferentes partícipes que nos permitiram passear pelos seus detalhes, ou seja, suas experiências com o olhar de uma criança curiosa. Usando metáforas como a linha, o tecido, o rizoma, o mosaico, os rastros, construímos uma possibilidade de expor estas experiências a partir do olhar, também curioso, de três educadoras no que diz respeito à arte afrodescendente (2011, p. 12).
“Compreender olhares de educadoras [...] foi [...] um processo [...] (que) não se fecha [...]” parece tentativa de provocar questionamentos destas profissionais em dois níveis – o das suas identidades como seres humanos/mulheres e como professoras/educadoras. Quando tentam olhar as realidades da arte afrodescendente, fazem isto em quais condições? Com quais identidades estavam sendo convidadas para opinar sobre elas mesmas como parte da objetivação de suas histórias como afrodescendentes? A arte afrodescendente fazia parte de suas vivências conscientes como – brasileiras, mulheres, afrodescendentes, professoras/educadoras e membros de outros grupos? Em comparação à pesquisadora, o que estava sendo exigido destas mulheres? Estas indagações não podem ser consideradas questões de identidades? É possível definir, nomear um fenômeno sem se posicionar como sujeito sócio-histórico? O que fazem, nomeiam ou explicam, acontece da forma como fazem porque estão também sendo no devir cotidiano de ensinar arte ou de suas vivências sociais como um todo?
Nesta mesma linha de um pensamento voltado ao fazer uma ciência que possibilita investigações continuadas com o propósito de melhor reconhecer a centralidade das identidades afrodescendentes, o primeiro autor destas reflexões de cunho crítico-analítico informa:
Neste estudo, o interesse fundamental era desvelar as explicações oferecidas por um grupo de mulheres afrodescendentes sobre o seu bom desempenho escolar. A motivação maior da pesquisa consistia em saber, de acordo com as suas opiniões, os fatores aos quais atribuem o seu sucesso principalmente como estudantes. Elementos sociais, culturais e qualidades pessoas, formaram o eixo das explicações apontadas. O período em que estudavam na universidade, até os anos ’70 ou depois, também ajudaram melhor contextualizar as experiências historiadas. Fatos marcantes, acontecimentos memoráveis, e pessoas significantes nas vidas das participantes do estudo, constituíram os fios das teias experienciais relatadas. As explicações oferecidas pelas 05 (cinco) mulheres afrodescendentes entrevistadas foram marcadas por elementos da memória coletiva dos membros femininos deste grupo. (BOAKARI, 2010, p. 02)
Observar que “desvelar as explicações oferecidas [...] seu bom desempenho escolar [...] saber [...] os fatores aos quais atribuem o seu sucesso [...] como estudantes” não é nada mais que outra tentativa de evidenciar as identidades de um outro grupo de mulheres afrodescendentes. A questão aqui não é mais sobre a arte afrodescendente, mas sobre as suas vivências e trajetórias como cidadãs exitosas academicamente, apesar de serem objetivadas e marginalizadas. Convites a pensar nos “fatos marcantes, acontecimentos memoráveis, e pessoas significantes” nas suas experiências como estudantes estão também voltados às questões de identidades em construção, e construídas com a participação – positiva ou negativa, de outras/os agentes sociais e históricas/os. Falar em “memória coletiva” é comemorar as vivências do grupo; as vitórias vivenciais e os desafios históricos. Este tipo de memória é também referência às lembranças individuais, as memórias pessoais como narrativas de vida, de experiências, de construções e desconstruções individuais e coletivas. Enquanto recordação do passado, a memória é seletiva – seleção é inclusão e exclusão ... quais os dados que foram relembrados? Como foram tratados alguns trechos das narrativas e recordações críticas? Falar em sucesso significa o fim e o início de quais experiências? Quais as implicações de cada aluna afrodescendente que consegue terminar o ensino médio e cursar/iniciar um curso superior?
Mulheres afrodescendentes, compartilhando pedaços das histórias de um povo, semelhantes na sua busca de se definir a si própria a fim de serem vistas (mais verdadeiramente?) pelas outras. Diferentes no modo de responder às exigências de suas condições de brasileiras marginalizadas por ser o que são naturalmente. As observações são gerais, mas se fundamentam em realidades particulares. Como afrodescendentes, os autores conseguem perceber esta riqueza com mais facilidade – as nossas histórias são geralmente muito parecidas. Quando não são comparadas às histórias de outros grupos, estas histórias tomam uma dimensão de completude humana maior, representando com mais adequação seres humanos cujas vidas merecem atenção e respeito.
Falando de realidades particulares que são de um povo, de uma coletividade
Depois de apresentar umas possíveis reflexões nossas acerca das educações e afrodescendências, apresentamos agora algumas falas das participantes dos estudos. São falas que tentam transmitir as experiências e opiniões de representantes de dois grupos de mulheres afrodescendentes que se ofereceram para compartilhar as suas dores e alívios como brasileiras afrodescendentes. Ao fazer isto, estavam disseminando as vivências de outras/os milhões de brasileiras/os de descendência fisicamente africana. O que colocam chama atenção dos desafios enfrentados até para ‘se dizer que são gente como outras pessoas’.
Uma das entrevistadas em Silva (2011, p. 79) coloca o seguinte:
É essa igualdade de tratamento, é a igualdade de conquista de espaço, ...a maioria das pessoas consegue...estão se despertando até pra manter o seu cabelo, porque uma das...principais características afros que se perde de imediato é o cabelo, porque é a moldura... que você primeiro é visto é pelo cabelo... é o cabelo ruim e o cabelo bom. Isso é visto desde a hora que você nasce...primeira coisa que as pessoas perguntam quando a criança...num pergunta não é o nome não. ‘É branco, é negro ou é preto? Como é que é o cabelo’? Pergunta nem o nome, se já tem num, que saber como é que é...E aí então já começa aí o processo de...opressão...de oprimir...de regularizar...me colocar num molde que a sociedade aceite...que é uma característica embranquecida... outra coisa também é a questão dos elementos ...estéticos...o cabelo, que é a boca, que é o nariz,... a maioria das artes...são voltadas pra questão...da pessoa... do físico da pessoa humana, ... do ser humano. (NÊGA ZINGA, Conversa do dia 11 de junho de 2011, Teresina, PI).
A mesma pesquisadora (2011, p. 92) recebeu a seguinte resposta de outra entrevistada –
[...] fazer com que toda a comunidade escolar começar a ver a arte de uma outra forma...que ela foi, de uma certa forma construída ao longo do tempo e nós estamos aqui também construindo uma história de ensino de arte diferente. (GIRASSOL, Conversa do dia 17 jun. 2011, Teresina, PI).
Na pesquisa relatada por Boakari (2010, p. 7), duas das entrevistadas forneceram as seguintes informações (opiniões e justificativas) para explicar porque conseguiram o seu sucesso escolar.
Desde bem pequena, quis sair da rua onde nós morávamos. Era bem feia; esburacada. Quando tinha chuva, estava coberta de lama...poços de água suja em todo lugar durante dias depois das chuvas. Não gostava de falar sobre a minha casa, nem o meu bairro...Sabia que precisava fazer de tudo para melhorar a vida. Comecei a trabalhar bem cedo ... trabalhava e estudava ... ajudava em casa. O que sobrava, usava para comprar material escolar. Meus avôs tentavam ajudar. Não tinham muito. Ganhei uma bolsa num Curso Pré-Vestibular de uma ONG. Me dei bem no segundo vestibular. Consegui terminar curso superior trabalhando. Sempre foi com muito sacrifício que consegui as coisas. Fico muito grata pela atenção dos avós. Ainda somos muito próximos; gostam muito dos meus filhos. (Sra. JOANA, Psicóloga escolar)
Não gostava de estudar, não! Ia para escola porque os meus pais me obrigavam. De vez em quando, não ia ...Um dia, o diretor da minha escola mandou me chamar. Queria falar comigo sem falta. Na sala dele, pediu para explicar porque faltava tantas aulas. A minha explicação não foi aceita. Me fez comprometer de nunca mais faltar as aulas. E todo dia, tinha que me apresentar antes e depois das aulas. Quando me esquecia, ele fazia questão de me procurar ... depois de uns meses, eu procurava ele para conversar ... ir para escola, não tanto para estudar, mas para estar perto do diretor. Por causa das nossas conversas, eu sou profissional escolar. (Srta.. REGINA, Técnica – Assuntos educacionais)
As falas reproduzidas aqui apontam para as seguintes experiências, lições de vida, expectativas, sonhos e comentários sobre realidades sociais brasileiras. Em nome de muitas/os outras/os brasileiras/os afrodescendentes, as quatro entrevistadas das duas pesquisas forneceram informações importantes sobre a necessidade de igualdade na maneira de tratar todos os brasileiros. Para as/os afrodescendentes, esta luta nasce com ela/ele. O seu nascimento é momento de uma felicidade questionada. A preocupação nem parece estar com a sua saúde, mas a sua aparência física – o seu cabelo e outros aspectos assumem uma centralidade que poderia ser fora do comum em outros contextos. Mas, nesta sociedade onde os critérios de beleza (estética reconhecida) são aqueles que se aproximam às características europeias, são estas características físicas que vão determinar o acesso aos bens sociais e serviços públicos, a sua própria sobrevivência como brasileira/o. Os elementos naturais são usados como moeda de troca para o nível de recompensa socioeconômica e compensação ou reconhecimento político durante toda a sua vida.
Há necessidade de conquista de espaço em todas as esferas da sociedade. É luta permanente, constante e sempre diversificada. No enfrentamento dos desafios, as condições econômicas também geralmente pobres, incrementam os problemas. Para um segmento significativo desta população, a escola e o seu espaço social parece não contribuir com a sua inclusão. As taxas escolares continuam indicando como é baixa a presença de crianças e adolescentes afrodescendentes nas escolas brasileiras. Sendo pobres em condições de pobreza, muitas/os afrodescendentes então precisam trabalhar; estudar e trabalhar, ou só trabalhar. As condições sociais podem servir de forças que lhes expulsam da escola, iniciando assim um ciclo vicioso de um baixo nível de escolaridade, desemprego, subemprego e pobreza. Para sobreviver, as pessoas precisam ser resistentes e resilientes; perspicazes e objetivas; inteligentes e corajosas; capazes de navegar socialmente e fazer a hora. Algumas pessoas recebem algum tipo de ajuda na forma de bolsas, cursos gratuitos, suporte de algum profissional ou apoio de uma instituição filantrópica. A presença da família na pessoa da mãe na maioria dos casos, ou dos avôs, também foi comprovadamente crucial. Foram estas algumas das estratégias utilizadas e agentes sociais presentes nas vivências escolares de mulheres afrodescendentes que conseguiram atingir um êxito escolar, chegando até a graduação em cursos superiores. Apesar deste êxito, os tratamentos de discriminação, exclusão e marginalização continuam, com mais sutilezas, mas qualquer tratamento desumano é tão desumanizador como qualquer outro. No tocante ao desrespeito e à desumanidade não há gradações; são atitudes-comportamentos que são presentes ou ausentes. Tentativas de avaliá-los em graus de intensidade mostram ignorância e insensibilidade para com o tratamento de outros seres humanos; uma má fé sem cabimento.
Discriminações, racismos e machismos são do cotidiano de afrodescendentes simplesmente porque são o que são, diferentes de membros de outros grupos populacionais considerados mais influentes/poderosos do país. Como estigmatizadas/os, membros de grupos que se consideram superiores constroem diversos tipos de tratamentos diferenciados. Com tempo e sem refletir sobre os comportamentos discriminatórios, conseguem reduzir as vidas das/os estigmatizadas/os até desenvolver ideologias que justificam as suas inferioridades pretendidas. (GOFFMAN, 1978, apud. SILVA, 2012b, p. 40). Sendo definidos como inferiores, questionam a sua própria condição de ser gente, um processo que pode continuar até chegar à negação de sua humanidade. Cada ato de discriminação e machismo baseado em questões raciais e de gênero nos aproxima a esta possibilidade. Tudo indica que é mais fácil negar a individualidade de uma pessoa que tentar aprender conviver com a/o diferente, uma situação que tem exigências psicossociais.
Constatações como indagações em processo
As observações sobre afrodescendentes em termos das identidades sendo semelhantes e diferentes encontram alguns explicações nas falas de algumas pessoas dos dois estudos sob exame que se consideram pertencentes a este grupo de brasileiros. As colocações dessas pessoas e de muitas outras de pesquisas semelhantes (SILVA, 2012b) apoiam a ideia da importância das educações. Enquanto a educação escolar influencia o acesso aos instrumentais que contribuem à mobilidade social, as educações não escolares têm uma relação interdependente com os processos escolares. Isto é, as experiências educativas fora do âmbito escolar ajudam na escolarização da pessoa, e esta volta a ajudar no desenvolvimento das outras. As educações são diferentes e semelhantes, instrumentos e produtos com a finalidade de ajudar na integração social do indivíduo e apoiar com as contribuições da pessoa para com a sua sociedade. Estas têm uma forte relação com as identidades das pessoas. As identidades atribuídas e as auto-construídas têm que estar em sincronia com as realidades da pessoa e de seu grupo/comunidade. As educações como socializações produzem identidades. Estas são subjetividades individualizadas e objetividades coletivizadas; enquanto construção individual, precisa da afirmação da coletividade para ser significativa. Deste modo, as identidades são fenômenos políticos, sociais, culturais e econômicos; não são neutras; têm objetivos e servem de instrumentos ao mesmo tempo. Como as educações são desenvolvidas durante toda a vida, as identidades também são permanentemente em construção como adaptações às realidades em mudança de acordo com os interesses e possibilidades dos sujeitos sociais (BERGER; LUCKMANN, 1985).
A identidade precisa ser pluralizada. São identidades. Fenômenos em movimento a fim de servir a sua finalidade principal, ser de ancoras em conjunto, guia das relações e interelações com outras pessoas. Como afirma Hall (1997, p. 13), “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada constantemente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Conhecimento deste movimento possibilita entender como as mulheres do segundo estudo conseguiram enfrentar com algum grau de êxito as discriminações e os machismos nas suas vidas. Elas mostraram que as realidades que determinam as identidades podem (e devem) ser enfrentadas quando estas desumanizam “porque identidade se constrói na interação. Não há uma identidade afrodescendente pronta, mas um percurso...feito de desconstrução/construção, que comporta sofrimento e superação...desafios a serem enfrentados para conquistar a condição plena de cidadãs e cidadãos” (SILVA, 2012, p. 40). Como e quando mudanças legislativas (Lei 12.288/2012 – da Igualdade Racial; Lei 11.340/2006 - Maria da Penha), medidas legais para mudanças nas práticas escolares (Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 – Ensino de Histórias e Culturas Áfricana/Indígena e Afro-Brasileira) e projetos de formação continuada (Gênero e Diversidade na Escola [GDE] e Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça [GPP-GeR]) visando influências democráticas em políticas públicas, vão surtir os efeitos desejados pela maioria dos brasileiros, uma sociedade verdadeiramente racialmente democrática? Como estas questões se relacionam aos fenômenos de equidade e igualdade numa sociedade que continuamente luta contra práticas que desumanizam membros de seus próprios grupos (indígenas, pobres, nordestinos, afrodescendentes, mulheres, crianças, pessoas com deficiência, homoafetivas/os e outros)? Quando o dito e o feito vão entrar em concordância para facilitar mais inclusão social e reprimir/reduzir as exclusões político-econômicas?
As preocupações com as identidades e educações que motivam estas considerações críticas, são primeiramente a partir do fenômeno racial objetivado na chamada arte afrodescendente. Depois, estas mesmas surgem a partir da própria existência e história social do outro grupo de mulheres brasileiras afrodescendentes. Estas parecem evidenciar algumas caracterizações que merecem alguma atenção.
- as identidades das/os oprimidas/os não são permanentes; elas também podem sofrer mudanças capazes de produzir novas realidades. O poder para transformar e se transformar não é privilégio de ninguém ou de nenhum grupo. Todos podem e qualquer indivíduo pode contribuir na construção de novas realidades e/ou novos modos de ser e dialogar com outras pessoas. Precisa romper com silêncios, dominar procedimentos que ajudam na auto-recuperação, processo de auto-cura gradual, processos catárticos que ajudam o indivíduo a se encontrar consigo próprio.
- Os pesquisadores e sujeitos das pesquisas são todos sujeitos tentando entender as suas vidas e realidades afrodescendentes. Cada qual de seu modo, tem voz e vez – as entrevistadas falam o que pensam e acreditam. Os pesquisadores refletem e se expressam sobre as realidades suas e das outras pessoas. Ninguém está assumindo as responsabilidades da outra; em diálogos refletidos com palavras próprias, estes afrodescendentes também falam das afrodescendências como possibilidades através de educações que precisam deseducar nos moldes da cultura dominante brasileira, racista, machista e preconceituosa. É esta dialeticidade que tem fortalecido as afrodescendências, dando sustentação aos enormes esforços no campo educacional de mulheres brasileiras que sofrem pelo menos três tipos de discriminações. Tudo indica que as contrariedades como contradições que se completam vão continuar colaborando neste processo de se recriar, refletindo sobre as próprias vivências e produções de membros do grupo para ir construindo identidades. Identidades estas que estão em movimento constante para melhor captar as mudanças e novas configurações.
- “Não somos coitadinhas” – resistentes, resilientes, objetivadas, corajosas e com muita perspicácia é a mensagem central vindo destes pesquisadores e das mulheres afrodescendentes que participaram dos estudos. Todos querem mostrar que há uma relação umbilical entre a história social, as vivências individuais, os processos educativos e as identidades resultantes. No nosso caso, as nossas educações nos levam a construir identidades que Castells (2000, p. 24, apud. SILVA, 2012b) ajuda descrever:
Identidade legitimadora [...] é aquela construída a partir da contribuição das instituições dominantes da sociedade, como Estado, igrejas, sistemas escolares oficiais, que desencadeiam do alto da hierarquia social um processo de expansão e de racionalização de sua dominação em relação aos atores sociais [...]
Identidade de resistência [...] criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo, opostos a estes últimos [...]
Identidade de projeto [...] quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo de buscar a transformação de toda a estrutura social.
Falar em identidades e educações é falar também em diferenças (dominações e lutas ao contrário) e construções-desconstruções-reconstruções; aprendizagens-desaprendizagens-re-aprendizagens; possibilidades e desafios; erros e acertos nos trilhos das vivências diversas. Falar em raça é falar em identidades e educações; discutir a mulher brasileira afrodescendente é pensar num grupo populacional que é tudo menos preguiçoso ou medroso; falar delas é pensar também, nos brasileiros afrodescendentes, nordestinos, indígenas, pobres e outros assim. Para fazer isto de modo dialético, o único modo desprendido porque esta caracteriza as suas realidades, precisamos considerar as identidades afrodescendentes como sendo compostas dos três tipos mencionados acima. São interdependentes e cada qual faz uma enorme contribuição na vida deste grupo de que falamos pouco e serve de referência para compreender como o poder pode desumanizar enquanto produz discursos de igualdade, liberdade e solidariedade.
Assim, enfaticamente afirmamos que não é uma questão de tolerância, tratar com a outra pessoa como um favor, fazer um sacrifício para viver com esta outra – não é isto de que falamos. Falamos de convivência que se traduz em respeito mútuo como seres humanos iguais e diferentes, covivendo em igualdade, reconhecendo sem sombra de dúvida (nas palavras e nos atos) de que as suas diferenças são tão reais quanto construções históricas e que fazem parte de uma mesma humanidade. Nesta humanidade comum pode haver “convivência pacífica entre as diferentes culturas. Deve-se tolerar e respeitar a diferença porque sob a aparente diferença há uma mesma humanidade” (SILVA, 2011b, p. 86).
Referências
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BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas H. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1985.
BOAKARI, Francis Musa. Mulheres afrodescendentes de sucesso: confrontando as discriminações brasileiras. ANAIS: Fazendo Gênero 9, Diáspora, diversidades, deslocamentos. Florianópolis, UFSC, 2010. Disponível em :<http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278155240_ARQUIVO_FAZENDOGENERO9-2010-BOAKARI.TEXTO.pdf>. Acesso em: 13 out. 2012.
BRANDÃO, Carlos Rodgrigues. O que é educação? (Coleção Primeiros Passos). São Paulo: Brasiliense, 1988.
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GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
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MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v.22, n. 37, 1999, p.7-32.
CAREGNATO, Rita Catalina Aquino; MUTTI, Regina. Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Texto Contexto Enfermagem. Florianópolis, out-dez, 15(4), 2006, p. 679-684.
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SILVA, Elizete Dias da. Povo bom de Cancela – identidade e afrodescendência: o que a escola tem com isso? Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Piauí. Teresina. 2012.
SILVA, Francilene Brito da. Arte afrodescendente a partir de três olhares de educadoras em Teresina. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Piauí. Teresina. 2011.
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