GT 16 – Educação Cultura e Sociedade
PEDAGOGIA DO MOVIMENTO: “CAMINHANDO, DISSOLVE-ME NO COLETIVO”
Vicelma Maria de Paula B. Sousa
Universidade Estadual do Piauí – UESPI
Uma possibilidade de começo
Inicio o texto com Lygia Clark “caminhando, dissolve-me no coletivo”, acrescidas da contribuição do documentário “O mundo de Lygia Clark” , deixando nos afetar para compreendermos a história de um olhar pesquisadora e sua experiência com o ato de pesquisar; das escolhas metodológicas no labirinto pesquisado; das suas percepções na relação com os sujeitos no processo.
Primeiro trago contribuições da entrevista texto de Hubert Godard por Suely Rolnik (2004) intitulada “Olhar cego”, quando os referidos pesquisadores dialogam a partir da leitura da obra de Clark. Partindo da sensibilidade da artista mineira, eles problematizam olhares: olhar objetivo (cortical) e olhar subjetivo (subcortical), os quais vão de encontro às “dimensões da percepção e das relações com o espaço geográfico”. O primeiro olhar, segundo Godard envolve aspectos no âmbito associativo e ligado à linguagem (olhar acostumado e engessado) . Já o segundo, ganha outras nuances, na medida em que é metaforicamente compreendido como o “olhar cego”, aquele capaz de transcender e transversalizar a linearidade da cartografia racional (geográfica) ‘fria’, factual do real. O mesmo ainda pode ser visto como um olhar que se funde no contexto, ou seja, um olhar que em mim (sujeito) é o próprio contexto. Portanto, que racha com a lógica do binômio sujeito-objeto.
Ainda em relação às interpretações dos pesquisadores a cerca das percepções de Lygia Clark, referendando a diferença entre os olhares, e sua implicação no modo como construímos o coletivo, neste texto tento retratar cenas do universo de uma pesquisa, que na sua natureza qualitativa, objetivou cartografar espaços juvenis rappers de construção de educações (saberes, conhecimentos, experiências) sociais, que perfazem o contexto urbano da cidade de Teresina-PI. São jovens que se apropriam de um estilo musical e de vida (Rap), no seu modo próprio de ser e viver no coletivo da cidade. Esta pesquisa recente, em nível de mestrado (2012), fala de um processo de afetação, enquanto pesquisadora. Tentando descrever o caminhar por entre os jovens e seus espaços de convivência artística, ou seja, de práticas educativas no praticar a cidade. Assim, trazer minhas experiências no trajeto da pesquisa se dá em semelhança às dimensões da percepção e das relações do espaço geográfico, como Godard ler Clark enquanto artista.
Contribui também, neste texto a noção de cartografia dos desejos de Suely Rolnik, quando esta desconstrói a racionalidade da geografia cartesiana, para anunciar outros sentidos para o trabalho do cartógrafo como um antropófago, com a capacidade e sensibilidade de cartografar espaços psicossociais na sua complexidade. Esta compreensão parte de metáforas que elucidam o trabalho arqueológico de um pesquisador social, que se entrelaça e se mistura com os contextos investigados e interpretados (zonas norte e sul da cidade), ou seja, o pesquisador se funde no próprio contexto analisado. Esta descrição assemelha ao estudo citado, por que como um cartógrafo social, estive a cartografar contextos juvenis, a lidar com multifacetadas formas de práticas educativas que ecoam em construções de múltiplas identidades, de gênero, raça, classe social, ocupação social etc.: jovens, homens, empobrecidos, afrodescendentes, rappers, em situações de desemprego e/ou subemprego, pais de família etc. O que dizem estas identidades? O que nós (academia) dizemos/sabem delas?
De acordo com a interpretação de Hall, ele diz
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior”- entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. (HALL, 2006, p.11-12)
Portanto, falar de identidades múltiplas, é não perder de vista a complexidade do ser humano em suas dimensões mais amplas: ser social, cultural, política, econômica etc. é ainda relembrar que estas, apresentam-se de diversas formas, a combinar com situações históricas. Como lembra Castells (2000), existem três tipos: identidade legitimadora, identidade resistência, identidade de projeto, estas dizem do nosso lugar no mundo social, ou seja, dos processos de subjetivações postos pelas educações que recebemos/participamos em sociedade. Cada uma delas, sem nos esquecermos são atravessadas no seu modo de constituição pelas relações de poder. A primeira é legitimada pelas engrenagens do poder estatal, e de outras instituições como: igreja, escola, por exemplo, que dita e institui modelos de ser/tratar-se uns aos outros; a segunda diz do resistir a estas formas instituídas de poder legítimo, que aprisiona, inferioriza pessoas, criadas por outras vozes de outras lugares, que se encontram em outras posições e situações, como os jovens rappers e suas formas de invertar e criar o cotidiano marcado por violências, e/ou outras formas de exclusão históricas; a última, coaduna a concretude destes atores sociais estigmatizados pelas discriminações e exclusões, construírem a partir de dispositivos culturais, um modo de se apresentar à sociedade de uma outra forma, protagonizando histórias próprias, do lugar que ocupam. Todas elas são reveladoras do conviver com as diferenças e tratá-las numa relação de equidade, e não como prestação de favor a estas.
Desse modo, tento trazer nas linhas deste texto, um pouco da cartografia do estudo citado antes, para assim, ‘fotografar’ os movimentos desenhados neste percurso, através de histórias que partem dos entrelaçamentos de sensações experienciadas por mim enquanto pesquisadora. A partir disto, penso que se faz pesquisa social, quando não separamos o que ser pesquisadora e sua intrínseca relação com a produção mútua de sentidos com o objeto, estas relações construídas no processo do tornar-se pesquisadora com o objeto, traduz-se no que Lygia Clark considera como um dissolver-me entre outros, tornar-me coletivo, portanto já
[...] perdi minha identidade, estou diluída no coletivo. Eu sou o outro. [...] Me sinto sem categoria, onde é meu lugar no mundo? [...] O silêncio, a interação no coletivo, a recomposição do meu eu, a procura de um profundo sentido de vida no grande sentido social, o meu lugar no mundo. [...] O me sentir através do outro como se copulasse comigo própria. O outro passa a ser eu, o inverso do conceito expresso e vivido por tanto tempo como eu sendo o outro. (CLARK, 1964)
Exatamente assim eu me senti durante os dias, meses e anos, que estive em campo com os dois grupos estudados e, os sete jovens somados aos grupos. Ao caminhar pelos espaços de convivência destes, como Clark, sentia-me dissolvendo entre eles, num misto de sensações em alguns momentos indecifráveis e indescritíveis. As minhas percepções se aguçaram na construção de um “olhar cego” porque aos poucos como eu já não era somente eu, eu era o outro, este olhar em construção ia fazendo com que eu fotografasse os acontecimentos, e os espaços praticados por nós (neste instante pessoas que se fazíamos em processo de pesquisa, e não somente, sujeitos e objetos), de maneira subjetiva, que o cortical de um olhar objetivo não me possibilitava ver o outro em mim e vice versa. A partir de então, eu e eles em processo de desobjetivação do nosso olhar acostumado, engessado íamos construindo saberes em movimento, o que revelou o estudo foi uma Pedagogia do Movimento.
Falar desta pedagogia no referido estudo é pensar a o ato de pesquisar no seu labor como Corazza.
Uma prática de pesquisa é um modo de pensar, de sentir, de desejar, amar, odiar; uma forma de interrogar, de suscitar acontecimentos, de exercitar a capacidade de resistência e de submissão ao controle; uma maneira de fazer amigas/os e cultivar inimigas/os; de merecer tal vontade de verdade e não outra(s); de nos enfrentar com aqueles procedimentos de saber e com tais mecanismos de poder; de estarmos inseridas/os em particulares processos de subjetivação e individuação. Portanto, uma prática de pesquisa é implicada em nossa própria vida. (CORAZZA, 2002, p.124)
Palavras de Corazza, também dizem das sensações e percepções do caminhar entre outros corpos e neles se dissolver, tornar-se um só corpo, entrenhado num misto de sentimentos. Posto que fazer pesquisa é estranhar pessoas, atos, jeitos, modos, identidades construídas em meio às diferenças, é vivenciar processos de subjetivações e individuações, portanto coletivo ganha peso de nossa própria vida.
Recolocar o imaginário em movimento
Olho curioso, atento, dócil, ansioso, parece deslizar sobre as ‘coisas’e as espelha e registra, e reflete e grava, olho, ora se turva e se embaça, concentrando sua via na película lustosa da superfície, para fazer-se espelho. (CARDOSO, 1995, p. 22)
Esta seção traz Hubert Godard recolocar o imaginário em movimento, diz do caminhar na pesquisa desde a minha primeira incursão no campo de estudo . Cardoso (1995), corrobora quando fala de um olhar atento, curioso, ansioso, que reflete, registra e, desse modo interfere nas re-significações do espaço visitado. Um olhar que nas suas urdiduras, possibilita gravar cenas, cenas em meio ao ‘caos’ instituído; capaz de gravar corpos em outros corpos. A pesquisa se deu em um labirinto (LARROSA, 2003), dado os atalhos e os movimentos de des-territorialização que enquanto jovem pesquisadora influenciaram o meu caminhar e meu olhar no processo. Durante um ano e meio de pesquisa, nas minhas andanças pelos espaços de convivência dos jovens rappers , nas perambulanças pelos bailes e/ou eventos, passeios organizados pelos mesmos, foram oportunos para que as afetações fossem recíprocas.
Do cenário, falo metaforicamente do labirinto, por vários motivos: primeiro, ao entender que labirinto é um espaço em constante movimento, por que me permite dançar (perdia para me achar nos sinuosos territórios que perambulei) por entre os meandros, chegava a ouvir e desenhar música para, ao invés de andar pelos becos, “quebradas” das comunidades, eu poder dançar nos espaços em movimento. Como diz Jacques, “o labirinto implica o aprendizado da dança”. (JACQUES 2003, p. 85), o que denota que este nem sempre é um espaço seguro, mas ao contrário, é desordenado. Portanto, sendo a noção de labirinto a que o estudo se refere, reflete o labirinto como uma imagem em movimento, impossível de captá-la totalmente, já que se encontra em movimento, pois este é um lugar de vida, de devir, de surpresa. Dessa forma, as comunidades por onde perambulei, serviram de fio e de repetição dos movimentos diferentes nos caminhos percorridos, pois muitas vezes retornei a estes caminhos, porque sendo o labirinto sensorial, eu fui afetada diversas vezes por meus sentidos, quando adentrava os meandros do campo estudado.
Daí a metáfora à sensibilidade aflorada por Clark, que trago no título – um dissolver-me entre corpos, para descreve sensações e percepções de uma pesquisadora com jovens rappers na cidade.
Neste momento, em que se deu a pesquisa, a Pedagogia do Movimento, pauta-se em elaborações de práticas educativas desenvolvidas por jovens rappers na cidade, a partir da linguagem artística da música rap. Assim, como toda prática educativa configura-se em uma prática pedagógica, aquela por ser construída em fluxos contínuos, que acontecem nos âmbitos da família, da escola, dos grupos de raps, do bairro etc. São saberes em des-continuidades, por que estão estes sempre em experimentados no devir de um cotidiano juvenil, com contornos “borrados”, pela própria condição com que os jovens na contemporaneidade brasileira se tornam o que são, em contextos de exclusões e violências. Portanto, conceituar tal pedagogia, é uma tarefa difícil, no sentido das complexidades de aspectos que atravessam estes sujeitos e sua relação com as realidades postas pela nossa sociedade.
Evidenciando estes pontos, para pensar aquela pedagogia, é vinculá-la às outras pedagogias, como: Pedagogia do Diferente (BOAKARI, 2007, p. 12) que dialogada com esta, a medida em que acredita em uma educação social vinculada a uma educação escolar, as quais primem pelo aprender aprendendo, que considere as diferenças no bojo da sociedade brasileira não como justificativa para tratamentos negativos ou privilegiados, mas como elementos imprescindíveis na construção da cidadania. (BOAKARI, 2007, p. 12)
No movimentar-me e perambular por entre os sete jovens, eu ia perdendo a neurose do olhar para elaborar o “olhar cego”- sensível a perceber e a apreender a realidade (o mundo) por outro filtro que não este primeiro, que reproduz o preconceito, as zonas de exclusão, na medida em que cria estereótipos, olhar acostumado a ver do mesmo jeito. No entanto, remover este filtro, é possível quando surge – olhar cego, que segundo Godard, possibilita a nós (pessoas) pesquisadoras(es) participarmos completamente das coisas do mundo, antes de engessá-las numa interpretação. Por outro lado, o mesmo ressalta que há um antagonismo nesta relação dos olhares, pelo motivo de não desconsiderar, que os dois olhares estão funcionando ao mesmo tempo. Desse modo, percebemos o quanto somos sujeitos objetivos e subjetivos nas nossas relações.
Assim, no movimento que fazia durante a pesquisa, fazia mover este filtro da neurose do olhar, quando do meu encontro com o outro no processo de tornar-se pesquisadora jovem entre sujeitos jovens. Mas também, de compreender como eles (jovens rappers) tornavam-se o que são, em uma produção da música rap, como dispositivo potente para lidar com as situações de exclusão (ser jovem, empobrecido, afrodescendente, rapper, que ocupam espaços geográficos da cidade, considerados de periferia, em sua maioria desempregados e/ou em situação de subemprego) na sociedade. Tudo isto, leva-me a pensar com Godard inspirado na Lygia Clark, embebido pelos questionamentos de Rolnik, quando diz que mover o filtro da neurose do olhar, é se permitir modificar esta posição do olhar, para refazer um mergulho num olhar subjetivo onde há uma perda das noções gravitacionais e outras, permitindo atingir um olhar talvez mais primeiro ou menos manchado de linguagem.
O que quero desenhar nas linhas deste texto é algo que não parece ser fácil. Quero fazer uma história do olhar, mas de um olhar cego, que não exime da sua subjetividade a objetividade, no entanto, põe em relevo a importância de recolocar o imaginário em movimento, num processo de fluxos de criação e reinvenção de si no outro, numa re-elaboração o qual se reporta para a seguinte questão: [...] é o olhar que lança uma chama sobre o objeto ou se é o objeto que envia uma chama para o olhar? Certamente, isso traduz o antogonismo do olhar objetivo e olhar subjetivo, que de acordo com Godard, este debate remonta-se aos pré-socráticos e perdura até hoje. Contudo, ele refaz esta discussão, quando considera que
[...] não é o artista que inventa o objeto, mas é antes uma mudança na percepção social, na percepção geral das pessoas que faz com que de repente, novos atratores se ponham em funcionamento. Quem vai captar esse atrator é aquele a quem chamamos de artista. (GODARD, 2004, p. 72)
Pensar o(a) pesquisadora(es) como artista, é compreender o fazer pesquisa uma arte, a qual dialoga com percepções sociais e gerais das pessoas, que por conseguinte emergem da(s) realidades das pessoas que são complexas, atratores que serão captados pelas(os) pesquisadoras(es) a partir de olhares variados, que vão desde a neurose do olhar, até a desconstração e/ou remoção deste filtro para o olhar cego. Este movimento do olhar (subcortial) retrata um processo de revolução, capaz de explicar a relação sujeito-objeto, quando segundo Godard, o conceitua e diz: [...] É um olhar através do qual a pessoa se funde no contexto, não há mais um sujeito e um objeto, mas uma participação no contexto geral.
Contar história de um olhar pesquisador, que se deixa levar pela percepção deste olhar subcortical, na academia ainda é uma tarefa ousada, pelo ‘ranço’ da lógica de construção da Ciência enquanto positivista. A qual roga pelo teor da cientificidade a partir de critérios apenas do olhar objetivo.
Perfazendo caminhos contrários a esta construção, falo de uma pesquisa social realizada com pessoas humanas em relações contínuas com a(s) realidade(s), de um fazer-se cotidiano intenso. Falo do movimentar-se em meio ao “caos” da contemporaneidade, que traz uma “sociedade pedagógica” genuína. Falo de jovens rappers, que produzem a si mesmo através da música rap, num cotidiano excessivo de violências. Falo de saberes das experiências, saber da convivência em grupo, da construção da consciência política por meio da música rap, de um e/ou vários corpos guerreiros de nascença (categoria presente no estudo), do saber da técnica de rimar e produzir bases musicais, do saber da publicidade de confeccionar cartazes para divulgação de eventos etc. Estes são alguns saberes objetivos e subjetivos, construídos por estes sujeitos sociais. Quando elaboram uma música, eles se dissolvem, já não conseguem distinguir nos versos, nas estrofes da mesma o que é escrita de um ou de outro, agora passa a ser corpos unidos por desejos semelhantes. Que esta música ecoe e se funde entre outros jovens, assim objetivam os rappers. São desejos em movimento.
Algumas categorias da entrevista, esta se deu em movimento pelas Vilas e Bairros da zona sul e norte da cidade de Teresina-PI, como sugestão dos jovens rappers, para que eu pudesse compreender como se davam suas práticas, quem eles eram, onde e quando vivenciam suas experiências, acharam imprescindível o meu perambular por entre os territórios de convivência. Assim, a fui cartografando e fotogrando cada “pedaço” de chão, cada espaço praticado por eles, desse modo, o estudo desenhou uma cartografia sentimental (ROLNIK, 2007), por traduzir os processo de afetação e as percepções de ambos os sujeitos (eu pesquisadora me dissolvia entre corpos objetos). Inusitado modo de fazer pesquisa. Como podia realizar uma entrevista em movimento?? Seria possível para a academia? O que diria esta técnica de produção de dados e sua relação com o rigor científico? São questões que hoje, já ganham outros contornos na academia, quando do fazer pesquisa com sujeitos sociais e suas estreitas relações de afetações com o pesquisador.
O negociar como seriam realizadas as entrevistas se deu de maneira espontânea e surpreendente, já que a proposta foi lançada pelos próprios jovens. Como pesquisar em movimento? Quais as implicações de uma pesquisa em movimento?
Dois jovens com codinomes Ras (Líder-nome africano masculino) e Jabulani ( propuseram e justificaram o seguinte
[...] as entrevistas, podem ser caminhando pelas Vilas? Por que você para conhecer nossa história precisa saber, os lugares que moramos, que construímos nossa letras das músicas, saber quem nós somos é andar por esses lugares, vamos?
Acatando a proposta, nós iniciamos a cartografia do chão onde estes convivem e realizam suas práticas educativas, mas também, trazem memórias de infâncias, de outros tantos amigos que morreram em combate com o poder de polícia, que no nosso país, com ausências de Políticas Públicas de/com/para as juventudes, estas entendidas como plurais em suas diferenças, sofrem dia a dia as violências deste poder. Daí, problematizar educações, juventudes com identidades antes citadas, carregam marcas identitárias que anunciam a precariedade e o silenciamento dos poderes do Estado. Este se apresenta de maneira violenta, ao tratar de políticas de segurança, apenas instituindo o poder legal de policial. O que tem reproduzido uma violência maior e perversa contra um segmento da nossa sociedade, descrito aqui. O que não podemos deixar de esquecer, é que a medida em as educações sociais e escolares são construídas, tendo em vista os interesses de cada uma, ao mesmo tempo são construídas em conseqüência as identidades acima elencadas.
Algumas apontamentos em andamento
Assim, ao construirem sentidos e significados para a prática Rap, que vão desde as mudanças no âmbito pessoal de refletir sobre a condição de ser jovem hoje, nas questões sociais, políticas e econômicas, que estão envoltas da sua condição juvenil, que podem ser explicadas, mas também numa relação de poder, apropriam-se do estilo musical como estilo de vida numa perspectiva de re-inventar a si mesmo. Percebe-se ainda, que ao atribuírem Sentidos e Significados à prática cultural Rap, os jovens vão desenhando modos diferentes para o ser/estar jovem rapper, por exemplo, quando consideram que ser jovem rapper é a afirmação de ser ao mesmo tempo um agente social na busca por uma transformação e poder ajudar outros jovens que, assim como eles, vivenciaram e vivenciam cenas de exclusão. Quando percebem que ser jovem rapper é um sonho, traduzem o desejo e a sensibilidade de poder criar possibilidades e de se fazer entre os outros, pois narram que sozinhos esse sonho não seria tão fácil de realizar.
Falar de si, por meio da música Rap, também significa para eles ser um guerreiro, na medida em que narram o seu cotidiano “periférico” através de uma linguagem própria, de ‘rua’ – semiótica de rua – como expressão de processos educativos e enunciações de educações construídas num cotidiano marcado pelas diferenças: de gênero, raça, cor, classe social, espaço geográfico, etc.
Por outro lado, esses jovens encontram no Rap um símbolo de resistência para denunciar, protestar, anunciar e problematizar estas condições excludentes. Constroem Territórios Sentidos que servem de trincheiras para protagonizarem em meio ao poder instituído e hegemônico. Atribuem sentidos a ‘pedaços’ das vilas do bairro que servem de ponto de encontro, onde constroem histórias, projetos de vida, onde trazem a memória de um ‘começo’ do grupo. Estes ganham Sentidos diferentes para eles e já não é só uma esquina, é uma esquina do Santuário “Pai João de Aruanda” traduzindo questões do que pode ser profano e/ sagrado neste contexto. Já não é só uma ou duas e outros tantos amontoados de vilas na zona sul de Teresina-PI, são Territórios Sentidos para os jovens que lá o praticam de forma singular, lá idealizam sonhos, trazem na memória histórias que os possibilitaram mudar de vida. Portanto, ao construírem sentidos e significados para ser/estar-com-os-outros-no-mundo os jovens rappers produzem processos educativos e constroem educações destituídas de uma especialidade em outros processos produzidos nos espaços institucionalizados – a escola, por exemplo. No entanto, revelam, a importância desta como espaço de socializações e aprendizagens capazes de promover uma mobilidade social.
Ao elaborarem escrita para compor uma letra de Rap, desenvolvem habilidades críticas, sensibilidades são afloradas e entram em cena por meio das poesias e ritmos, às quais não se pautam em papéis planos, em linhas retilíneas, porém, transcendem este plano do papel, esta superfície lisa e passam para as suas dobras, num movimento de desvendar os sentidos produzidos pelas sonoridades dos seus corpos. Ao cantar estas letras anunciam emoção, especulam interesses de serem reconhecido, de ganharem visibilidade. Criam contextos de sociabilidades, no instante que se agrupam para idealizarem projetos e concretizarem sonhos: o de gravar um CD, de realizar um baile/show, de poder estar fisicamente, mas mais que isso, simbolicamente, estar em um palco e cantar para uma ‘galera lá em baixo’. Isso tudo demonstra o quanto ser/estar jovem rapper ganha Sentidos diferentes para cada um. Todo o planejamento para a realização de um evento, desde as reuniões para distribuir atividades entre cada um (pedir patrocínio, confeccionar cartazes, contratar o som, arrumar o palco, o roteiro da programação, etc.), traduz situações de interativas e formas de negociação entre eles, que coadunam em processos educativos, num fazer coletivo de construção de saberes individuais. Sendo estes processos constituídos de várias pedagogias.
Referências
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CARDOSO, Sergio. O olhar dos viajantes. In: NOVAES, Adauto (orgs.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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CORAZZA, Sadra M. Labirintos da pesquisa, diante dos ferrolhos. In: Costa, Marisa V. (org.). Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. 2. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
GODARD, Hubert. Olhar cego. (entrevista por Suely Rolnik, Paris, 21 julho, 2004). Disponível em: <https://docs.google.com/folder/d/0B2ccHup4AN8wNzkwNjJjMGUtNGI1ZS00ZGQ3LTkxNjUtNTMyYTUxZTY4MGRk/edit?hl=pt_BR&pli=1>. Acesso em: 03 out, 2012.
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: Silva, Tomaz Tadeu (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 2. Ed. Petrópolis: RJ, Vozes, 2000.
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2003.
LARROSA, Jorge. Estudar. Tradução: Tomaz Tadeu e Sandra Corazza. Porto Alegre: Museu da UFRGS, 2003.
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ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Porto Alegre: Sulina; Editora UFRGS, 2007.
SOUSA, Vicelma Maria de P. B. “Rap de quebrada”: construção de sentidos e saberes pelos grupos de raps –“A Irmandade” e “Reação do Gueto” em Teresina-PI. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Piauí. 186f. Teresina, PI, 2012.